Queda de Damasco — a tragédia da Síria e as forças por trás do fundamentalismo

Os relatos que temos de Hafez na Academia da Força Aérea dizem a mesma coisa. Jovem alegre e proativo, era o mais querido de sua turma. Seu temperamento cativante, a atenção carinhosa que dispensava aos colegas e amigos, tornaram esse jovem humilde o membro mais querido da recém-fundada Força Aérea Síria. Sua família pobre comparecia agora ao seu casamento com a garota dos seus sonhos, da elite alauíta. O futuro de Hafez aparecia no horizonte na luminária de uma vida brilhante.

Naquela época, a Síria era governada por Adib al-Shishakli. Ligado ao Partido Social-Nacionalista Sírio (PSNS), ele subiu ao poder após vingar o assassinato do mítico líder do PSNS, Antoun Sa‘adeh, por articulação do então presidente Husni al-Zaim. Sa‘adeh se batia pela criação do “novo homem” sírio, capaz de transcender os seus limites tribais, étnicos e sectários, e se sacrificar de corpo e alma à nação única formada pelos povos do Levante. Ele pregava uma obra de cultura, educação e moral, da qual pudesse surgir uma nova mentalidade, um novo tipo humano, uma nova forma de vida, coroada na formação de uma entidade política sólida, englobando a Síria, o Líbano, o Iraque, o Kuwait, o Chipre e outros territórios da região. Mas o nacionalismo libanês era forte entre os maronitas da recém-fundada república fenícia independente. Em 1949, Sa‘adeh foi perseguido; seu partido foi fechado; seus discípulos foram mortos. Ele tentou uma revolta, com apoio de Zaim, para restaurar a liberdade de propaganda, cultura e organização do PSNS. Zaim o traiu. Sa‘adeh — um cristão ortodoxo, que recebeu os últimos sacramentos — foi morto. Shishakli o vingou pessoalmente.

Em lugar de Zaim, subiu Hinnawi — que era na prática um títere de Shishakli. Após alguns anos, o próprio Shishakli tomou as rédeas para si. Em pouco tempo, ele construiu o governo mais bem-sucedido da história da Síria no século XX. O país virou o mais ordeiro e seguro da região, e imensas obras de infraestrutura se erguiam diante dos olhos sírios. Tudo ia às mil maravilhas.

Mas a Síria é uma anarquia tribal. Com grupos forçados a se fechar pela insegurança que a centralidade geográfica trouxe à região, ela tem sido ao longo da história um sistema — mais ou menos agrupado de ponta a ponta pela suserania dos impérios — de clãs. Shishakli não conseguiu decifrar a Esfinge. Uma revolta drusa explodiu, e recebeu uma péssima resposta. Sua queda era iminente. Para não derramar o sangue do seu povo, ele fugiu para o Brasil. Morou até o fim no interior de Goiás. (Mas sua vida durou pouco: um druso o seguiu e, certa noite, enquanto Shishakli cruzava uma ponte, de volta para casa, em Ceres, o matou.)

Shishakli, como Zaim e Hinnawi, tinha dois inimigos: o comunismo e o fundamentalismo islâmico. A primeira constituição síria, ainda no Mandato Francês, era um paraíso de liberdade religiosa. Com uma população que se estima fosse de cerca de 30% de cristãos, os líderes sírios eram avessos ao radicalismo islâmico, pregado então pela Irmandade Muçulmana. Os nacionalistas — como o PSNS — tinham uma racionalização mais profunda para isso. Criar uma nação, nas condições do Oriente Médio, só era possível com o devotamento nacional acima de todas as divisões sectárias. Incitar a divisão entre os grupos era incitar a fragmentação e a fraqueza. Mas eles não eram ateus. No Oriente Médio, o ateísmo sempre foi uma excrescência. O comunismo lhes parecia horrível. E, desde que a União Soviética foi — como mostram Gabriel Gorodetsky e Leonid Mlecin — a única responsável pela criação do Estado de Israel entre 1947 e 1948, o comunismo era para eles um inimigo existencial, que deveria ser aniquilado.

Hafez era um desses nacionalistas. Na flor da adolescência, ele se apaixonou pelos ideais do Partido Ba‘ath, fundado pelo cristão Michel Aflaq, em grande parte sob a influência do PSNS — se bem que com poucas ideias em comum. O Ba‘ath era mais espiritualizado que o PSNS. Aflaq tinha um estilo paulino no seu ideal por uma nova civilização espiritual e um novo homem idealista e fecundo. Seu nacionalismo estava em linha com correntes mais populares do que o PSNS: era um nacionalismo baseado na congregação nacional de todos os árabes, sem atenção às diferenciações regionais e culturais do Oriente Médio. Como líder estudantil, Hafez chegou às alturas da eminência jovem no Ba‘ath. A Irmandade Muçulmana o odiava. Ele tinha dezesseis anos quando recebeu sua primeira facada de fundamentalistas, em uma emboscada.

A vida política de Hafez adormeceu, enquanto ele se formava na Força Aérea. Mas novos desenvolvimentos mudariam tudo — e o tornariam, como ninguém poderia imaginar, um dos homens mais poderosos da Ásia.

Zaim e Shishakli se esforçaram, como nenhum outro estadista árabe, pela paz com Israel. Eles fizeram apenas condições simples — que nenhum outro teria a coragem de fazer. Em uma palavra, eles aceitariam assinar a paz plena com Israel e receber todos os refugiados palestinos. Mas pediam um acesso ao Mar da Galileia e ao rio Jordão, e um auxílio no assentamento dos refugiados. Eram condições absolutamente justas. O Mar da Galileia era a fronteira da Síria, que tinha direitos reconhecidos a uma porção das águas dele e do rio Jordão, e o acesso seria uma contrapartida mínima pela solução do maior problema existencial que Israel enfrentou desde o início. A condição chegava ao nível das exigências humanitárias. Era irrespondível e irrecusável.

Mas Israel recusou. Por quê? Ninguém sabe ainda — os maiores estadistas israelenses não sabiam também. Eles questionaram, confusos, por que não estavam aceitando. Mas os documentos não registraram a resposta.

A história, porém, parece ter indicado. Pouco depois, Israel iniciou uma política de “retaliações” contra o Egito, a Jordânia e a Síria. O pretexto eram infiltrações de refugiados palestinos nas suas fronteiras — que, segundo os israelenses, eram auxiliadas pelos regimes. Sabemos, hoje, que não é verdade. Uma verdadeira montanha de documentos revela duas coisas: primeiro, que os “infiltradores” não eram guerrilheiros, mas quase sempre palestinos comuns, que perderam tudo, movidos por causas sociais ou econômicas, às vezes apenas querendo rever sua terra; segundo, que os três países estavam fielmente comprometidos a combatê-los. A Síria, dos três países, era justamente a mais radical.

Mesmo assim, Israel espalhou que estava em uma guerra existencial — e precisava “dar uma lição” aos três países. O líder dos ataques geralmente era Ariel Sharon, que chefiava, na época, a infame “Unidade 101”. Uma das retaliações mais importantes foi o enorme massacre de Qibya, na Jordânia. Outra foi na própria Síria: 54 sírios foram mortos por Sharon no Mar da Galileia. Sabemos, hoje, que não havia nenhuma animosidade por trás do ataque. Não era uma vingança por nada. Era um ataque gratuito.

O que estava por trás de tudo isso? A explicação aparece nos diários do então primeiro-ministro, Moshe Sharett. Ele registrou em maio de 1955 as palavras do lendário Moshe Dayan, à época chefe do Estado-Maior. Não poderíamos parar as retaliações, porque elas são o “nosso elixir de vida”. “Sem elas, não teríamos uma nação imbuída de espírito combativo”. No caso específico da Síria, segundo se sabe das conversas de Dayan com David Ben-Gurion, eles esperavam aproveitar o recente acordo de defesa da Síria com o Egito nasserista, para forçar Nasser a declarar uma guerra em resposta. Como ambos costumavam repetir (e como repetiriam mais eminentemente no famoso Protocolo de Sèvres, durante a Crise de Suez), uma guerra desses países contra Israel permitiria que, da vitória, se tomasse o sudoeste da Síria, Gaza, a Península do Sinai e também, caso a Jordânia aderisse, a Cisjordânia, a Cidade Velha e a maior parte do seu território a leste do Jordão. Tudo se passaria como se fosse uma “conquista defensiva legítima”.

A Síria e o Egito não reagiram. Mas Israel não esmoreceu. Os ataques recrudesceram, com força cada vez maior. Os países árabes eram uns pobres coitados, enquanto Israel era financiado e armado pelos Estados Unidos, Inglaterra e França. Eles não podiam reagir — não possuíam recurso algum. Mas Chou En-Lai percebeu isso a tempo. “Devemos esperar uma grande colisão no Oriente Médio entre o que [Nasser] chama de ‘novas forças do nacionalismo árabe’ e os colonialistas e reacionários que se opõem a ele”, escreveu En-Lai para a embaixada soviética em Pequim. “A lógica da história aponta para o movimento nacionalista como a próxima força do Oriente Médio, e devemos nos aproximar dele tão amigavelmente quanto pudermos”. Logo depois, a União Soviética ofereceu ao Egito uma quantidade massiva de armas, a um preço insignificante. Os olhos de Nasser brilharam. Era o famoso “acordo das armas tchecas”.

Desamparados, os sírios tinham agora o amparo em quem nunca esperaram: a União Soviética. Esse sentimento de alívio e proteção gerou o inimaginável — o crescimento do comunismo sírio. Agora, eles estavam a um passo de tomar o poder! O Partido Ba‘ath, convictamente anticomunista, se desesperou. Ninguém poderia salvar Damasco de se tornar o primeiro país comunista do Oriente Médio. Era o fim inexorável, o rumo inescapável para onde se encaminhava o país — e nenhuma força poderia pará-lo.

Na verdade, havia uma força. Sim, Nasser. O grande herói de todos os árabes, ele era a encarnação viva dos seus mais altos ideais de grandeza e dignidade. Nasser — o som do seu nome, sozinho, levava os árabes ao êxtase. E, apesar do acordo das armas tchecas, ele era um anticomunista tão convicto quanto Aflaq e o Ba‘ath. Ele perseguia implacavelmente os comunistas egípcios e, em desespero, vinha alertando os Estados Unidos contra o avanço do comunismo na Síria. Sim, Nasser poderia salvá-los. Como? Reinando sobre eles.

O Ba‘ath obrigou Nasser a governar a Síria. Após muitos dias de discussão cerrada, ele aceitou. As massas o aclamaram. Naquele dia, Damasco não viu uma gota de sangue.

Mas, até aquele dia, Damasco também nunca tinha visto Nasser. Ele jamais pisou na Síria. O novo regime — a República Árabe Unida — se revelou um fiasco. Em especial, Nasser era muito centralizador. A catástrofe aconteceu quando ele forçou o Ba‘ath a ser fechado. Os jovens baathistas, formados desde bem cedo na paixão pelo ideal do “novo homem árabe”, se desesperavam. Hafez, o antigo baathista, voltou à cena.

Reunido a vários oficiais militares também egressos do Ba‘ath, liderados pelo alauíta Salah Jadid, Hafez começou a conspirar. Eles eram o “Comitê Militar” — e o seu objetivo era a democracia. Todos eram de minorias religiosas: alguns, alauítas; outros, ismaelitas. A dissolução do partido pelos líderes do Ba‘ath, Aflaq e Salah al-Din al-Bitar, foi um escândalo para esses rígidos baathistas. O partido praticamente acabou. Hafez mantinha a chama de uma difícil esperança, enquanto ruía a casa do seu ideal. Seu primeiro filho, Bushra, tinha adoecido e morrido — e, ajoelhado no leito do pequeno, frente a um colega militar, em meio ao desastre do seu país e do seu ideal, ele chorou amargamente. Tudo parecia dar errado.

Os seus novos ideais também chegaram ao fim em 1961. Fundamentalistas islâmicos, financiados pela Arábia Saudita, dissolveram a República Árabe Unida. Aquela época era o florescer da chamada “Guerra Fria árabe”, em que nacionalistas — boa parte cristãos — e fundamentalistas disputariam o poder em todo o Oriente Médio.

Nada ia bem para Hafez. Transferido ao Egito logo após a união por suas ligações baathistas, sua esposa agora era confiada a um amigo para voltar por mar à Síria, com o novo filho, que, por essas horas, sem o pai, passava seu primeiro aniversário — seu nome era igual ao do anterior, Bushra. Hafez estava preso. Irrelevante capitão, foi solto em uma troca de prisioneiros. Em Damasco, seu novo superior suspeitava dele. Rapidamente, ele recebeu uma licença por tempo indeterminado. Inquieto por seus irmãos de ideal, mal teve tempo para rever sua família — viajou com pressa ao quartel da Força Aérea em Damasco. Ele recebeu então uma má notícia: sessenta e três oficiais baathistas, inclusive ele e seus quatro companheiros do Comitê Militar, seriam desligados e transferidos a cargos civis idiotas em departamentos do governo. O salário de Assad, com o qual precisava manter sua jovem família, foi cortado drasticamente. As perspectivas no horizonte eram más. No meio cinza e arborizado das montanhas, a pequena família Assad encarava o destino.

Mas os nacionalistas não haviam desistido. Após uma série de golpes e contragolpes, um grupo nacionalista conseguiu triunfar, em 1963. Não era qualquer grupo: era o Comitê Militar. Do dia para a noite, tudo deu certo. Além disso, eles estavam de volta com a “velha guarda” do Ba‘ath.

Mas a instabilidade logo se gerou em torno de dois problemas: o fundamentalismo e o esquerdismo. A Irmandade Muçulmana, irritada, iniciou um momento de terror em Hama. Por outro lado, o Comitê Militar estava em um caminho muito mais radical do que a “velha guarda”. Salah Jadid, deslumbrado com a União Soviética, agora era marxista. Isso levou Aflaq a um conflito sério com o novo regime. Quanto ao fundamentalismo, a revolta de Hama foi suprimida pessoalmente por Hafez; quanto ao esquerdismo, Aflaq foi expulso. Hafez o apoiava — mas as circunstâncias da vida síria o fizeram passar incólume. Exilado no Iraque, Aflaq fundaria, poucos anos depois, o regime baathista iraquiano, liderado por seu terno discípulo Saddam Hussein.

Mas o atrito fundamentalista não passou sem consequências. Nasser foi distraído no Iêmen, em um conflito sem fim, para apoiar a nova república nacionalista que substituiu a tirania sanguinária e islâmica radical do imamato. A resistência se encarniçava de um jeito que ninguém conseguia entender. Toneladas em armas e dinheiro fluíam, não se sabia de onde, para a resistência do tirano. Documentos e relatos revelaram mais tarde o que tinha acontecido. Israel, para manter Nasser distraído, impedir o crescimento do nacionalismo no Oriente Médio e imobilizar os recursos militares dos seus adversários, assumiu a paternidade leal da causa do Imã. Nasser caiu feito um patinho.

Além disso, uma onda de atritos árabes-israelenses começaram com a perspectiva de que se completaria o Aqueduto Nacional de Israel. O que preocupava os árabes eram duas coisas: primeiro, que o Aqueduto estava sendo construído com base no roubo deliberado das porções de águas do rio Jordão e do Mar da Galileia cujos direitos pertenciam aos países árabes, como os EUA reconheciam; segundo, que a sua conclusão representaria a possibilidade da colonização de milhões de judeus no deserto do Negev — permitindo a Israel um afluxo demográfico e econômico que se converteria em vantagem militar para a continuação de ataques, como a retaliação de Qibya, ou para uma guerra total, e assentando definitivamente a região, que o plano de partilha original havia definido como árabe. Essa preocupação aquática se somou a outra, ainda maior: a certeza de que Israel estava construindo armas nucleares. Era a pura verdade, como mostrariam os arquivos israelenses, ao serem abertos, décadas depois. Israel, que, por mais que os países árabes oferecessem a paz, jamais a quis assinar, ganharia uma população em idade militar muito maior, um poder econômico muito maior, uma colonização definitiva de regiões definidas pelo direito internacional para os árabes, e armas de destruição em massa.

Jadid era o estadista errado, no momento errado. Ele era muito radical. Os confrontos com Israel aumentaram as animosidades. Nasser — contra quem o Ba‘ath ainda estava irritado — não podia ajudar: o Iêmen o consumia. O Iraque estava sob um governo semi-baathista, liderado por um dos maiores estadistas árabes do século, o moderado Abdul Salam Arif. Mas o Iraque também não podia fazer nada. Desde 1964, Israel fez um acordo — cujos detalhes foram revelados nos livros de Shlomo Nakdimon e Bryan Gibson — para que a minoria muçulmana curda, constituída pela limpeza étnica dos cristãos assírios (suas vítimas nos dois ou três genocídios assírios de 1894 até 1933), mantivesse uma agitação permanente, imobilizando completamente o Iraque, ao ponto de impedi-lo de enviar tropas contra Israel em algum conflito. Além disso, a Arábia Saudita estava secretamente ao lado de Israel. Uma comissão especial do Conselho de Ministros, incluindo o ministro do Interior e o futuro rei Salman, recomendou em dezembro de 1966 “apoiar Israel na tarefa de paralisar definitivamente o Egito e a Síria”. O rei Faisal concordou e deu diretrizes, que Hafez, décadas mais tarde, ainda guardaria em seu escritório. O Egito deveria ter seus “pontos vitais” tomados, forçando-o a “manter-se ocupado com Israel por um longo tempo”. “A Síria é a segunda que não deve escapar desse ataque, com a perda de uma parte de seu território, para que ela também não se concentre em preencher o vazio após a queda do Egito”. “Consideramos necessário o fortalecimento de Mullah Mustafa Barzani no norte do Iraque, para estabelecer um governo curdo cuja missão seja impedir qualquer governo em Bagdá que quisesse reivindicar a unidade árabe ao norte de nosso reino, seja no presente ou no futuro”.

Tudo aconteceu desse jeito. A Guerra dos Seis Dias foi deflagrada unilateralmente em junho de 1967 por Israel, usando o bicho-papão da ameaça egípcia, que, mais tarde, os estadistas israelenses admitiram não ser verdade. “As Forças de Defesa de Israel são um exército decididamente agressivo de assalto no modo que pensa, no modo que planeja e no modo que implementa”, declarou Moshe Dayan, dois meses antes. “A agressividade está em seus ossos e seu espírito”.

Foi uma catástrofe. Da Síria, Israel tomou as Colinas de Golã, preparando-se para se expandir por toda a região de Hauran. Apesar disso, Yigal Allon fez uma jogada paradoxal. Ele começou a articular com os líderes drusos para constituírem, em todo o Hauran, um Estado druso independente. Existe uma certeza de que Allon via aquela região como parte indivisível da Terra de Israel. Por que, então, o Estado druso? Um objetivo óbvio seria sua função de “tampão” pró-Israel contra a Síria baathista. Mas ele revelou um mais importante em carta ao líder druso Kamal Kanj, em 1971. Com um Estado étnico-religioso como o druso, as outras minorias — maronitas, circassianos, curdos, assírios, alauítas etc. — seriam compelidas a buscar o próprio Estado, enfraquecendo a unidade árabe contra Israel.

Esse ideal não era uma megalomania de Allon. Ele foi formulado pela primeira vez por David Ben-Gurion, em 1954. É uma história muito interessante, que vale a pena ser contada. Durante a queda de Shishakli, Ben-Gurion, o pai da nação, não era mais primeiro-ministro. Ele se “licenciou” por um ano, passando o cargo a Moshe Sharett. Logo após a fuga de Shishakli, o então ministro da Defesa de Israel, o infame Pinchas Lavon (protagonista do “caso Lavon”, que pretendia realizar ataques terroristas de falsa bandeira contra americanos e europeus no Egito para acusar Nasser), propôs a Sharett que aproveitassem a completa instabilidade da Síria para tomar o sudoeste do país. Sharett, por essa época, era uma espécie de pacifista. Ele adiou a discussão, pedindo para conversarem a respeito com Ben-Gurion, durante sua visita a Tel Aviv, dali a alguns dias. Ben-Gurion chegou — e ficou entusiasmado! Mas ele estava mais fascinado com outra coisa. Agora, na sua opinião, era o momento para a “tarefa central da nossa política externa” — tomar o sul do Líbano e dar o norte para os cristãos.

Os cristãos ficariam desprivilegiados, pobres e fracos, reconheceu. Mas Israel ficaria ainda mais forte, e seria o único protetor do Estado maronita. Os países ocidentais se veriam então obrigados a defender Israel, já que este agora seria o grande defensor dos maronitas libaneses. Moshe Dayan, ao ouvir a ideia, ficou ainda mais entusiasmado. Ele sugeriu um plano: dar dinheiro a um major cristão “para fazê-lo concordar em se declarar o salvador da população maronita. Então as Forças de Defesa de Israel irão entrar no Líbano, ocupar o território necessário, e estabelecer um regime cristão que se aliará a Israel. O território do Litani para baixo será totalmente anexado a Israel e tudo se ajeitará”. Ben-Gurion, no ápice do êxtase, profetizou: “Depois disso, haveria uma grande reorganização do Oriente Médio, e uma nova era começaria”.

(Sharett não descartou a ideia. Ele achou inexequível. Mas admitiu: “Eu certamente seria favorável à ideia de ajudar ativamente qualquer forma de agitação na comunidade maronita que tendesse a fortalecer suas tendências isolacionistas, mesmo sem haver chances reais de atingir os objetivos. Eu consideraria positiva a própria existência dessa agitação e a desestabilização que ela poderia trazer, as dificuldades que ela causaria à Liga Árabe, o desvio de atenção sobre os problemas árabe-israelenses que ela causaria, e o próprio acendimento de uma fogueira composta de impulsos em direção à independência cristã”. Essa postura remontava ao relatório que recebeu em março de 1951, no qual se propunha o apoio à Falange Libanesa, para transformar os cristãos em “um alvo para as atividades muçulmanas”, desviando sua atenção de Israel.)

O plano de Ben-Gurion e Dayan havia sido sistematizado mais tecnicamente no Plano Lavi do Estado-Maior das Forças de Defesa de Israel, em 1954. Firmando uma doutrina nacional de defesa, o plano tratava de vários pontos. Dois, em especial, chamavam a atenção: a defesa de uma expansão astronômica do território israelense, englobando até mesmo um imenso território da Arábia Saudita; e a defesa da partilha de toda a região em micro-estados, para facilitar. A Síria e o Líbano dariam lugar a um Estado druso, um circassiano, um maronita, um xiita, um curdo, um alauíta e outros — e, todos pequenos, explicou o plano, dependeriam de Israel para assegurá-los. Alguns anos mais tarde, Ne’eman preconizou entre os “objetivo nacionais” de Israel uma grande guerra na Síria, para dissolvê-la a partir de um Estado curdo e um Estado druso

Israel acreditou que a tomada de Golã, após a Guerra dos Seis Dias, facilitaria o seu plano. Mas se enganou. Dentro de algum tempo, Hafez, até então Ministro da Defesa, tomou as rédeas da situação. Aquele jovem humilde e puro era agora um homem sombrio, que tinha nas mãos uma catástrofe humana. E ele trazia uma certeza: não aceitaria que Israel jogasse a situação em seus próprios termos.

Os insurgentes de Hama, então, voltaram. Agora, eles estavam muito mais fortes. Uma verdadeira guerra consumiu a Síria da década de 1970. Por mais tolerante que Hafez fosse com os sunitas, nada adiantou. Os membros da Irmandade não queriam aceitar um regime nacionalista e secular. Eles queriam sangue, jihad e sharia. Só isso acalmaria suas paixões. E só isso Hafez não lhes queria dar.

* * *

Seria difícil fazer um resumo do que tem sido a história da Síria nos últimos cinquenta anos. É possível que nenhum estadista no século XX tenha tido um governo tão áspero quanto Hafez. Seu povo estava comprimido por todos os lados. Até mesmo Saddam e Aflaq, seus companheiros baathistas, se voltaram contra a Síria — e o próprio Saddam, um secular que perseguia a Irmandade Muçulmana no Iraque, secretamente a apoiou, embora por um curto tempo, na Síria.

As virtudes políticas de Hafez são raramente repetidas em outros homens. Elas se revelaram imediatamente na sua intransigência quanto à posse síria de Golã. Dotado de nervos de aço, ninguém mais do que ele foi resiliente e firme no Oriente Médio. Parecia que nada o abalava. Após definir os seus objetivos, ele só os abandonava se vencesse. Essa foi a sua grandeza — mas, muitas vezes, a causa da sua queda. E talvez tenha vindo causar a queda de Damasco.

Bashar não foi preparado para o “trono”. Ele não tinha nem chance. Seu irmão, Bassel, havia nascido para isso. Um herói nacional da Síria, mais idolatrado do que o próprio Hafez, desde a infância ele se preparava para assumir o poder. Morreu em um estúpido acidente de trânsito, em 1994. Sobrou para o obscuro oftalmologista Bashar.

Mas Bashar pegou o jeito. Sua resistência à “guerra colorida” dos fundamentalistas islâmicos, em 2011, foi inflexível. Ele não aceitaria que o seu país caísse para a mesma insurgência que o seu pai esmagou, quarenta anos antes dele. Ele foi até o fim.

Infelizmente, seus inimigos não estavam dispostos a esperar mais quarenta anos por uma oportunidade. Israel, a Turquia, a Arábia Saudita e os Estados Unidos fariam um pacto com o demônio — como fizeram muitas outras vezes — para inviabilizar a última opção nacionalista do Oriente Médio. Em 12 de fevereiro de 2012, Jake Sullivan, o então arquiteto da política americana para a Líbia e Síria, escreveu em e-mail para Hillary Clinton: “A al-Qaeda está ao nosso lado na Síria. […] As coisas têm se desenrolado basicamente como esperávamos”. E o que esperávamos? A resposta pode ser encontrada em um telegrama da Embaixada dos EUA em Damasco em 13 de dezembro de 2006 para o Ministério da Defesa de Israel, em Tel Aviv, e o governo americano. Entre as três vulnerabilidades que deveriam ser exploradas para desestabilizar Bashar al-Assad e depô-lo, uma era “a potencial ameaça ao regime pela crescente presença de extremistas islâmicos”. O telegrama recomendava “ações, declarações e sinais” para “aumentar a probabilidade de que essas oportunidades surjam”. A fabricação de um conflito entre sunitas e xiitas, em coordenação com a Arábia Saudita, também foi indicado.

O plano de Yuval Ne’eman estava agora a pleno vapor. Muitos conhecem o “Plano Yinon” de 1982, que dava como diretriz à política externa israelense a completa dissolução dos países regionais. Isso foi preconizado para o Egito, o Sudão e o Líbano; “a dissolução da Síria e do Iraque, mais tarde, em áreas por etnia ou religião, como no Líbano, é a principal meta de Israel na frente oriental a longo prazo”, sendo a Síria partida entre um Estado alauíta, um druso e dois sunitas rivais entre si, “enquanto a dissolução do poder militar desses Estados é a principal meta a curto prazo”. No Relatório Clean Break, o pai espiritual dos neoconservadores americanos, Richard Perle — futuro arquiteto da Guerra do Iraque —, foi preconizado que a Síria deveria ser atacada, enfraquecida, contida “e até revertida” (?), e o seu regime, deposto. Mas, para isso, o primeiro passo seria “tirar Saddam Hussein do poder no Iraque — um importante objetivo estratégico israelense por si só — para frustrar as ambições regionais da Síria”.

O Plano Yinon reconhecia que a dissolução do Iraque era ainda mais importante para Israel do que a da Síria. De fato, ela é que foi posta na mira em primeiro lugar. Perle, ao lado da cena neoconservadora que ele montou em torno de si, com base nas lições do seu mentor Bernard Lewis, defensor da “libanização” (ou melhor, “balcanização”) de todos os países regionais para transformar o Oriente Médio em um “arco da crise”, deflagrou a Guerra do Iraque. A não ser pelo Kuwait, Israel foi o único país do mundo que o apoiou. Benjamin Netanyahu escreveu um artigo absurdo no Wall Street Journal, em que argumentou que Saddam possuía centrífugas do tamanho de máquinas de lavar, escondidas em todo aquele “país muito grande”, que deveria ser revistado caverna por caverna para encontrá-las. Falando mais a sério, Shlomo Avineri, um dos nomes mais conhecidos do pensamento sionista e ex-diretor-geral do Ministério das Relações Exteriores de Israel, deu um bom fundamento para a invasão. O título de um dos seus artigos sobre o tema, publicado no Los Angeles Time, diz tudo: “Israel poderia viver com um Iraque fragmentado e falho”. Seu argumento é que o Iraque era um país artificial, e “nem a federação é uma alternativa”. A única solução era uma partilha idêntica à da Iugoslávia (a literal “balcanização”), para criar um Estado curdo, um Estado sunita e um Estado xiita. Mas é em uma passagem específica que ele foi mais revelador. Após assinalar que a insurgência islâmica no Iraque contra os EUA nunca iria cessar, ele escreveu: “Israel está preocupado com tudo isso? Sim e não. Certamente não quer que o fracasso no Iraque enfraqueça o poder e o prestígio dos Estados Unidos. Mas um Iraque dividido em três mini-estados […], ou um Iraque em guerra civil, significa que o tipo de ameaça representada por Hussein — um ditador nacionalista extremista […] — dificilmente voltará a crescer”. Um Iraque em guerra civil! Sim — contra a ameaça de um líder “nacionalista extremista”, essa era a melhor opção.

Os resultados, todos sabemos. E o alvo seguiu a ordem de Yinon e Perle — agora seria Assad. Do dia para a noite, uma constelação de grupos rebeldes islâmicos, quase todos de alguma forma ligados à Al-Qaeda ou ao Estado Islâmico, foram importados do Iraque para a Síria. Abu Mohammad al-Jolani, líder do atual HTS, nascido na Arábia Saudita, foi um desses veteranos iraquianos que chegaram contra Bashar. A Arábia Saudita, Israel e a Turquia estavam prontos para recebê-los. Existe uma gama impressionante de documentos e declarações que atestam o financiamento aos grupos radicais sírios por esses países. Amos Gilead, um dos nomes mais altos da inteligência militar de Israel, declarou ao Yediot Aharonot: “Já é possível observar agora a Al-Qaeda na Síria. […] Abertamente, militantes da Al-Qaeda que estão fluindo para a Síria dizem que estão esperando a oportunidade de tomar o controle do país. A Al-Qaeda já está implementando seus objetivos terroristas. Isso está acontecendo. Zawahiri, do Afeganistão, e os líderes da Frente Al-Nusra estão realizando atentados graves dentro da Síria. Eles estão agindo de forma sistemática para construir seu poder. Mas ainda assim, com todo o respeito a essa ameaça, ela não é tão grande quanto a representada pelo Irã, Síria e Hezbollah”. Amos Yadlin, ex-chefe da Inteligência Militar, reforçou: “Esses elementos sunitas que controlam de dois terços a 90% da fronteira em Golã não estão atacando Israel. Isso te dá uma base para pensar que eles entendem quem é seu verdadeiro inimigo — talvez não seja Israel”.

No início do conflito, Michael Hertzog, ex-secretário militar do Ministério da Segurança e chefe de gabinete do Ministério da Defesa, propôs uma força de apoio à oposição, para acelerar a queda do regime. Amos Yadlin chegou a clamar por uma invasão de Israel à Síria para depor Assad. Avigdor Lieberman, então ministro de Assuntos Estrangeiros e Defesa, declarou em julho de 2017 que Israel não podia permitir que o regime continuasse, porque, “enquanto Assad estiver no poder, o Irã e o Hezbollah permanecerão na Síria”. Mas mais interessante a Israel era que a guerra simplesmente continuasse. Yusri Hazran, uma das grandes autoridades em Israel sobre o Oriente Médio, citou a conclusão de Moshe Ma’oz e do decano da academia israelense em assuntos árabes, Elie Podeh: “A tendência dominante no público israelense e nos círculos dirigentes reflete a crença de que as revoltas atendem aos interesses estratégicos israelenses; portanto, é melhor que os dois lados — o regime e a oposição — continuem lutando. Na opinião deles, a revolta e a guerra em andamento […] favorecem os interesses estratégicos israelenses”. Era a mesma posição de Avineri sobre o Iraque.

Hazran mencionou uma opinião comum, citando entre seus adeptos, nominalmente, o Major Avi Jager, do escritório do primeiro-ministro: “Alguns acreditam que os desdobramentos da revolta síria favorecem os interesses militares e de segurança de Israel. A revolução não apenas destruiu a infraestrutura e a economia sírias, como reduziu a capacidade humana, militar e de combate da Síria. Os números das forças armadas sírias caíram de cerca de 290.000, quando a revolução eclodiu, para cerca de 90.000 soldados e combatentes e quase 2.000 tanques; 60% da capacidade da força aérea também foi perdida. A revolução síria e a guerra civil removeram, portanto, a última ameaça tradicional à segurança do Estado judeu, sem que nenhum exército árabe represente uma ameaça à sua segurança a curto ou médio prazo”.

Destruir a Síria, pô-la de joelhos, fragmentá-la até reduzi-la ao nada, incapaz de reagir a Israel — foi essa a política israelense. Implantar a sharia e transformar a Síria em um novo experimento fundamentalista — era essa a política turco-saudita. Os dois projetos se combinaram aqui, como têm se combinado em todos os últimos 60 anos de história do Oriente Médio.

Bashar resistiu como pôde. Nunca um estadista árabe enfrentou tantos lados ao mesmo tempo. Seu país inteiro era um campo minado. Mas ele se comprometeu com o seu próprio projeto — impedir a destruição da Síria e proteger as minorias religiosas e a integridade territorial do seu país. “A região inteira do Oriente Médio precisa dos cristãos”, ele disse em 2016. “Os cristãos ao longo da história contribuíram, com suas posições e seu patriotismo, para frustrar os projetos de divisão da região, e enviaram uma mensagem aos inimigos da Síria e patrocinadores do terrorismo de que todos os seus projetos coloniais estão destinados a falhar”.

Nenhuma expectativa pairava sobre Bashar. Ele certamente levaria a pior. O patriarca maronita Bechara Boutros Raï alertou que apenas três cenários seriam possíveis, agora que Bashar iria cair: a guerra civil sectária; a divisão da Síria em mini-Estados sectários; a criação de um Estado fundamentalista islâmico. Todos os altos líderes católicos e ortodoxos do Oriente Médio disseram coisas parecidas. Em 2020, porém, Bashar tinha vencido.

Era um milagre. E, nos últimos anos, nós o contemplamos, contentes e esperançosos. A Síria voltava a ser o grande centro moderador do Oriente Médio. A reconstrução será lenta, e a mobilização do povo, mais ainda. É preciso que os refugiados voltem. As sanções americanas devem ser levantadas. O BRICS deve ajudar de todo o coração. Mas aí está, tudo à nossa frente: está aí Bashar al-Assad e o seu regime baathista, firmes como uma rocha, para proteger os cristãos e a segurança do Oriente Médio.

Então, veio a Guerra de Gaza. Ninguém podia explicar por que Israel seguia atacando a Síria. Bashar nada fazia, nem nada queria fazer. Era de conhecimento geral que ele estava empenhado fielmente em manter o seu país longe do conflito. Um acordo tácito se firmou entre ele e o próprio Hamas, para não envolver a grande pátria dos assírios e arameus. Ele precisava reconstruir o seu país, se quisesse fazer algo. Mesmo assim, Israel atacou posições do governo frequentemente, sem qualquer justificativa. Parecia claro que Israel pretendia forçar a Síria a responder.

Mas não era isso. A verdade, viemos  descobrir só agora. Israel queria enfraquecer as Forças Armadas sírias e desmoralizar o regime de Assad — para que, em conluio com a Turquia, levasse ao triunfo da Al-Qaeda. Embora Caroline Glick e Ayoob Kara tenham promovido recentemente a instalação de um Estado druso, e os israelenses tradicionalmente apoiem os curdos, a própria ideia de um regime sunita extremista já era simpática aos estrategistas israelenses. Moshe Ma’oz, assessor constante de primeiros-ministros, ministros da Defesa e das FDI e uma das mais respeitadas autoridades intelectuais sobre questões de Oriente Médio em Israel e nos EUA, afirmou em O Islã político e a primavera árabe que Israel se beneficiaria de um regime fundamentalista, do qual seria aliado contra o Irã. Mesmo que o novo regime fosse da Irmandade Muçulmana, acrescentou, não representaria nenhum perigo a Israel e seria muito melhor do que o Ba‘ath.

A primeira grande campanha conjunta de Israel com a Turquia foi contra os cristãos cipriotas, na década de 1950. Naquela época, a Turquia, que nasceu de uma reação secularista ao Império Otomano, sob Ataturk, retornou pela primeira vez ao fundamentalismo. Ela não aceitava os ideais de um Chipre cristão, governado pelo Arcebispo Makarios. Pois bem, que sorte: Makarios era um pró-arabista e anti-Israel. Assim, os turcos queimavam igrejas e perseguiam os “porcos infiéis” cristãos na Anatólia — e Israel era o seu principal lobista e aliado. Agora que a Turquia pisou no acelerador neo-otomanista sob Erdogan, Israel entrou full-on na parceria regional contra seus inimigos comuns. É a isso que estamos assistindo.

A Al-Qaeda apenas precisou de um designer e um barbeiro para virar o atual HTS. Segundo o New York Times, a Turquia foi responsável pelo financiamento, armamento e até orientação e aconselhamento da nova organização, que, colada nas suas fronteiras, recebeu a proteção de sua artilharia contra os avanços do regime. Sabe-se que o HTS tem sistematicamente buscado relações com os países do “mundo ocidental”. E sabe-se, ainda mais, qual foi o grande gatilho da nova ofensiva contra Assad — o enfraquecimento do Hezbollah por Israel.

A vitória do HTS foi literária. O último ato, é ele que traz à luz a interpretação da peça. A história ganha um novo prisma diante da sua própria conclusão. Suas cortinas se abrem para toda a verdade sobre o apoio de Israel, da Turquia e dos EUA ao fundamentalismo islâmico contra o nacionalismo árabe. E ele revela, como nunca antes, o papel que o Irã e o Hezbollah tiveram na luta contra o terrorismo.

Foi da fraqueza do Hezbollah que veio a Al-Qaeda — e ela veio com apoio israelense. Os ataques de Israel contra as instalações do regime, em pleno avanço das forças do HTS, se intensificaram. Tem-se reportado que Amir Ohana, o porta-voz do Knesset, líder LGBT que Netanyahu há pouco tempo cotava para o Ministério das Relações Exteriores, afirmou no Canal 12 que Israel vê com satisfação o que acontece na Síria e que tem desenvolvido ações secretas nesse campo. Benjamin Netanyahu louvou que “esse colapso é um resultado direto dos golpes que infligimos ao Irã e ao Hezbollah, os principais apoiadores do regime Assad. Isso criou uma reação em cadeia ao redor do Oriente Médio por todos aqueles que querem se libertar desse regime opressivo e tirânico”. Joe Biden pronunciou que, “por anos, os principais apoiadores de Assad foram o Irã, o Hezbollah e a Rússia. Na última semana, seu apoio colapsou, todos os três. Todos eles estão muito mais fracos hoje do que estavam quando assumi o cargo”. Contrastando com as sanções americanas à Síria de Assad, o “Caesar Act”, “esse processo será determinado pelo próprio povo sírio. Os Estados Unidos farão tudo o que puderem para apoiá-los […] para ajudar a restaurar a Síria após mais de uma década de guerra e uma geração de brutalidade por parte da família Assad”. “A queda do regime é um ato fundamental de justiça”. Enquanto isso, o bispo de Aleppo era exigido a pagar o jizya, a impor o hijab e a remover os ícones de suas igrejas. Ainda agora, os maronitas são convocados por seus líderes para a confissão e o viático, a fim de se prepararem para o martírio.

A reação de Lavon à deposição de Shishakli surge mais uma vez. Netanyahu se expande pelo Quneitra. Ele promete que é uma medida defensiva, da qual irá recuar após fazer um “arranjo adequado” com o novo regime. Um arranjo? Até ontem, todo o Quneitra era sírio; agora, os governantes sírios precisam fazer um arranjo para tê-lo — e, se não fizerem, estão obstruindo a paz… Mas Israel não largará o seu novo território, como não largou o Golã. Não, porque todo o Hauran, no mínimo até As-Suwayda, é por ele reivindicado. Lavon pretendeu implantar o terrorismo no Egito; os estadistas israelenses mais tarde o implantaram na Síria — e ele gerou exatamente a instabilidade política de raízes étnico-sectárias que Lavon parabenizou na crise drusa contra Shishakli.

Quando li pela primeira vez “Damascus has fallen”, meu primeiro pensamento pousou em como deve ter se sentido um medieval ao receber a notícia da queda de Jerusalém, em 1187. Sim, agora eu sabia como foi. Damasco caiu; o último reduto contra o fundamentalismo não existe mais. Damasco, o único país pós-otomano (o que não inclui o Líbano) que jamais se rendeu à sharia, acaba de pôr sobre sua cabeça a coroa espetada do sangue da jihad. Assad caiu. E caiu sem um pronunciamento. Nada se ouviu de Bashar; nem uma palavra consolou o seu povo. Do avanço a Aleppo, até a tomada de Damasco, Bashar está em silêncio.

Desde então, todos estamos em silêncio. Porque um luto pesa sobre a civilização.

Autor: Matheus Batista | Autor de “Cristo e Israel” disponível em pré-venda na Livraria Nova Offensiva: https://livraria.novaoffensiva.com.br/produto/cristo-e-israel-como-se-arquiteta-uma-mentira/.

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